//CARLOS MOTTA// Os incomodados que se retirem

Charge de Ziraldo publicada em O Pasquim: na ditadura era assim...


Três ou quatro publicações que fiz ao longo dos anos em redes sociais palpitando sobre algo em Serra Negra mereceram comentários do tipo "se não está satisfeito aqui, vá embora". 

Esse tipo de resposta a uma crítica ou a qualquer opinião a respeito de fatos ligados à cidade que escolhi para morar me lembra duas frases, uma do imaginário popular e outra dos tempos sombrios da ditadura militar: "Os incomodados que se retirem" e "Brasil, ame-o ou deixe-o".

São duas frases com igual sentido e que igualmente refletem um chauvinismo - ou seria xenofobia? - que infelizmente se torna mais frequente em todo o mundo. 

Extremistas de direita, grupos fascistas e neonazistas presentes no Brasil e em inúmeros outros países vomitam diariamente slogans contra imigrantes, estrangeiros e etnias que consideram indesejáveis. 

Há inúmeros casos, por exemplo, de brasileiros que sofrem violência em Portugal, nossa "pátria mãe", e um dos destinos primeiromundistas preferidos pela nossa classe média. 

Outros são achincalhados nos Estados Unidos, a "Terra da liberdade e oportunidade", uns tantos agredidos em nações europeias historicamente tidas como ultracivilizadas... 

E por aí vai.

Serra Negra, que não é uma ilha isolada do Brasil e do mundo, embora vários de seus moradores ajam como se fosse, tem, em diferentes proporções, esse chauvinismo - ou xenofobia? - presente no seu dia a dia. 

"Você é de quem?"

Várias pessoas me disseram que essa é uma pergunta trivial que alguns serranos fazem àqueles que acabam de conhecer. Pode ser uma pergunta inocente, só para puxar conversa, mas não deixa de carregar esse sentimento de estranhamento, de distanciamento, frente a uma pessoa que ainda não se encaixou plenamente na comunidade.

Por ser uma cidade pequena, onde poucas famílias, descendentes de imigrantes, concentram a maior parte da riqueza, e onde um grupo político domina há décadas o Executivo e o Legislativo, é compreensível que atitudes chauvinistas - ou xenófobas? - sejam encaradas como manifestações sociais normais.

Afinal, devem pensar essas pessoas, Serra Negra é nossa, pertence a nós. Quem quiser viver aqui tem de obedecer as nossas regras.

Uma dessas regras, talvez a mais destacada, seja a de que não se deve criticar a ordem presente - tudo está bem, nada deve ser mudado, pois tudo sempre foi assim.

Pensar diferente - nem pensar!

Dessa maneira, nesse contexto, qualquer crítica a qualquer aspecto da vida cotidiana da cidade é encarada pelos chauvinistas - ou xenófobos?- como uma ofensa, que deve ser respondida da maneira mais agressiva possível.

É como se o "ame-o ou deixe-o" da década de 70 do século passado ainda estivesse em pleno vigor na Serra Negra de 2024.

É muito triste isso.

Porém, por mais tristeza que eu sinta ao ver que há pessoas tão baixas ao ponto de querer reprimir meus direitos de cidadão, esse sentimento é menor do que o desconsolo que me abate ao assistir a uma parcela da sociedade optar por viver no passado, alimentando-se de ódio, ressentimento e medo - ódio do estranho, ressentimento da crítica que eventualmente recebe, e medo da mudança, da diversidade e do novo.

Tenho porém a esperança de que, demore o tempo que for, o rio da história, com suas águas às vezes calmas, às vezes turbulentas, vai levar para o amplo oceano todas essas impurezas que impedem Serra Negra de ser na plenitude a decantada  "Cidade da Saúde".

Pois uma "cidade da saúde" não pode permitir que consciências minúsculas, inimigas do bem-estar coletivo, obstruam o caminho da tolerância, fraternidade e igualdade - pilares da civilização humana.

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Carlos Motta é jornalista profissional diplomado (ex-Estadão, Jornal da Tarde e Valor Econômico) e editor do Viva! Serra Negra



 



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