//DIA INTERNACIONAL DA MULHER// Luciana venceu tudo: preconceito, pobreza, doença...

Luciana: "Fui a primeira professora negra em uma escola particular em Serra Negra"


A guia de turismo Luciana Silva Ramos diz que conhece a dor do racismo desde que se entende por gente. Quem não entende ou acha que isso é "mimimi" teve a sorte, na sua opinião, de não precisar viver isso literalmente na pele.

Antes de se formar professora e depois trocar o magistério pelo turismo, Luciana, que aos 11 anos já estava no mercado de trabalho, foi empregada do comércio e da área de serviços. Em Serra Negra, foi a primeira professora negra de escola da rede privada de ensino. Na região do Circuito das Águas Paulista, integrou o primeiro grupo de guias turísticos diplomados e com a profissão legalmente reconhecida.

Deixou o magistério e abraçou o turismo por paixão pela profissão com boas perspectivas de carreira em uma cidade turística. Mas enfrentou duros desafios, como uma demissão por racismo, a pandemia que prejudicou principalmente o setor turístico e o trabalho dos guias de turismo. Proibidos de sair com excursões, os guias ficaram em casa sem apoio dos governos de todas as esferas, incluindo a municipal.

Luciana enfrentou dificuldades financeiras, depressão e ansiedade, mas se redescobriu em cursos e atualizações durante a pandemia. Voltou ao mercado com a retomada da economia com muitas ideias criativas, como o turismo de experiência e privativo para pequenos grupos. 

Luciana é uma das moradoras de Serra Negra escolhidas para ser homenageada no Dia Internacional da Mulher, em solenidade na Casa da Cultura e Cidadania Dalmo Dallari, nesta quarta-feira, 8 de março, às 20 horas, em evento que conta também com o patrocínio do Viva! Serra Negra.   

Além de Luciana, serão homenageadas Vera Lúcia Godoi de Paula (comerciária), Iza Bordotti de Carvalho (ativista ambiental), Neusa Aparecida de Paula (enfermeira), Clarice Ramalho Alves (merendeira), Ramona Calouro (agente de saúde), Isabel da Borda de Lima (agricultora) e Adriana De Biasi Dorigatti (ativista da causa animal).

"Luto pelo o que acredito e 
não aceito preconceito nem contra 
mim nem contra ninguém"

"Meu nome é Luciana Silva Ramos, nasci em São Paulo, vim para Serra Negra com oito anos. A minha mãe é daqui. Desde pequena sempre gostei de estudar e ler muito, ainda que não tivesse condições de comprar livros. Uma coisa que tenho comigo até hoje é que nunca gostei de ver injustiça com as pessoas, com os animais, e sempre fui defensora de amigos. Se alguém estivesse sofrendo preconceito ou injustiça, eu defendia.

Cresci e estudei em Serra Negra, no Lourenço, no Jovino, fiz muitos amigos e me formei professora. Fui pioneira em várias coisas na cidade. Com relação ao preconceito, as pessoas dizem que é mimimi, o que me revolta. Sorte de quem não vivenciou isso. Eu vivenciei desde que vim ao mundo, com a história da minha própria mãe, que teve uma vida sofrendo preconceito e me criou com muito sacrifício para me dar o estudo que ela não teve.

Desde criança passei por situações de preconceito, tanto na escola quanto na sociedade de forma geral. Sempre tive muitos amigos e fui muito querida, mas passei por essas situações inúmeras vezes. Tenho orgulho e alegria. Fui a primeira professora negra em uma escola particular em Serra Negra. Dei aula no Libere Vivere por 15 anos. Hoje estou no turismo, há mais de 24 anos, e quem me trouxe para essa área foram os pais dos meus alunos.

Ainda professora, criei com uma amiga um curso de férias para as crianças dos pais que precisavam trabalhar nas férias, porque a cidade é turística. Uma das atividades que incluímos foi uma excursão ao Playcenter, em São Paulo. Deu tudo tão certo que fiz outra excursão e os pais pediram para eu organizar uma excursão para teatro, cinema e lazer em São Paulo e aí comecei a me interessar pela área.

Não havia formação na região para essa área. Fui buscar fora a qualificação. Me formei na primeira turma de guia turístico do Circuito das Águas há mais de 20 anos. Em 2005 deixei o magistério e optei pelo turismo. Fiz técnico de turismo e vários outros cursos de formação na área, como turismo rural. Dei aula durante oito anos na escola profissionalizante em cursos livres na área de turismo.

Fui pioneira também nos atrativos de turismo rural. Minha preocupação sempre foi oferecer serviço de qualidade e um trabalho direcionado para que o turista tenha um olhar diferenciado da cidade, relacionando a história com os dias atuais. Quando comecei como guia de turismo, a profissão não era conhecida. Fiz um trabalho de porta em porta nos hotéis. Hoje tenho uma carteira com clientes de praticamente todos os Estados do país.

Foram anos de trabalho e dedicação para conquistar a clientela,  a confiança dos hotéis, e mostrar a importância do trabalho do guia de turismo, que até hoje nem sempre é reconhecido. E esse é um dos desafios da profissão. Muitos órgãos ligados ao turismo em todas as esferas, do federal ao municipal, não dão o devido valor ao trabalho de guia de turismo, a única profissão regulamentada do setor.

Luto pelo o que acredito e não aceito preconceito nem contra mim nem contra ninguém. Aquela cultura de que no Interior a pessoa que busca seus direitos fica marcada e não arruma emprego faz com que muita gente acredite que é inferior, porque é pobre ou pela cor de pele. Só quem passou pela discriminação racial ou homofobia sabe as marcas que isso deixa. Eu não me calo. Já fui vítima, fui demitida por discriminação racial e isso foi um marco na minha vida.

Era considerada excelente funcionária, mas isso não foi considerado quando apareceu um cliente racista e eu fui demitida. Não processei os empregadores porque a pessoa que seria testemunha tinha filhos, marido e poderia ser demitida também. Não entrei na Justiça, mas cobrei tudo a que tinha direito legalmente.

A demissão por racismo foi traumatizante. Entrei em depressão, minha mãe e namorado ficaram indignados. Uma face triste do racismo  é quando vejo negros sendo racistas e dizendo que racismo  é mimimi, mas esse comportamento é também consequência do racismo estrutural do país.

Apesar da dor, a experiência resultou em uma virada na minha vida. Com o dinheiro da rescisão, fui para a Europa, fiquei um mês lá. Foi a melhor experiência. Voltei e abri minha própria agência de viagens com uma amiga, enfrentei muitas dificuldades, persisti e consegui.

Eu usava o contato com pessoas de todos os lugares e todo o tipo que confiavam no meu trabalho e estava ampliando meu trabalho. Mas veio a pandemia, um mês depois de inaugurar a nova agência. Achei que seria rápido, mas veio a quarentena e depois mais de dois anos de pandemia. Foram oito meses de portas fechadas, com todos os custos sem vender, sem receber. Fechei as portas e fiquei no home office.

O turismo foi o setor mais afetado e o guia de turismo o profissional mais prejudicado, não recebeu apoio nem do governo federal nem municipal. Ninguém se preocupou com o guia turístico. Em meio à depressão, dificuldades financeiras e ansiedade,  aproveitei para estudar online. Fiz muitos cursos, muitos contatos e não tinha estimativa de quando voltaria a trabalhar.

O ônibus ficou muitos meses sem poder entrar na cidade. Foi mais de um ano e meio sem poder atuar na minha profissão. Fui trabalhar em lojas, estudei e quando voltei, remodelei. Minha vida foi ressignificar as coisas. Comecei a atender tours privativos e com a necessidade do que havia no mundo e no Brasil e que é uma tendência, o contato com a natureza, o turismo de experiência ganhou uma proporção muito grande.

Mudei a logomarca para Cristal Shambala Tur, turismo de experiência. Ainda estou remodelando, farei novos lançamentos e sempre criando diferencial. Os guias levam sempre os mesmos atrativos. Estou reestruturando a  marca, redes sociais, e fazendo novas parcerias. Pretendo continuar com o guiamento, mas além dos tours privativos, vamos trazer novidades para Serra Negra que tem maravilhas e que encanta os turistas. Isso é uma benção, um diamante." 



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