//CARLOS MOTTA// O Dom Camillo serrano e seu mundo imaginário



Dom Camillo é um padre conservador e anticomunista, que lutou contra os fascistas italianos na Segunda Guerra Mundial. Ele é o pároco de uma pequena cidade do Vale do Pó, cujo prefeito, Peppone, é comunista e lutou lado a lado com Dom Camillo contra o fascismo. Os dois se respeitam, mas travam, diariamente, uma batalha para impor suas ideias na comunidade em que vivem, pobre como toda a Itália do pós-guerra. 

Dom Camillo e Peppone são personagens de ficção, criados por Giovannino Guareschi. As aventuras dos dois viraram livros e filmes que fizeram sucesso no mundo todo. Guareschi era, como o pároco da cidadezinha que a sua imaginação criou, anticomunista. Mas quem conhece a sua obra percebe o equilíbrio com que retratou as ações do padre e do prefeito - os dois estavam, acima de qualquer divergência, preocupados com o bem-estar da comunidade.

Fora essa desavença permanente entre eles, Guareschi pintou na sua obra o cenário de um país devastado pelo horror da guerra, onde os escassos bens materiais eram substituídos por muito trabalho e esperança de dias melhores.

As deliciosas histórias de Dom Camillo e Peppone foram protagonizadas há quase 70 anos. Naquele tempo o mundo vivia dividido pela Cortina de Ferro, sob o temor de uma guerra atômica. Era o "mundo livre" contra o "mundo oprimido" dos comunistas soviéticos.

Hoje já se vão mais de 30 anos que a União Soviética não existe. Seus satélites se converteram fervorosamente ao capitalismo. 

No Brasil, os partidos que se dizem comunistas são nanicos. O maior partido da esquerda, o PT, é social-democrata. Nos 13 anos em que governou o país, aprofundou como nunca antes na história o capitalismo, ampliando o mercado consumidor, criando milhões de empregos, construindo obras de infraestrutura, liberando crédito barato para compra de bens de consumo - e permitindo, dessa forma, que empresários, ruralistas e banqueiros ganhassem muito dinheiro.

O maior líder do PT, Lula, que governou o Brasil duas vezes, não é socialista, nem comunista, nem radical. É um conciliador, antes de mais nada. Nos seus governos, não perseguiu ninguém, deu liberdade para a imprensa desancá-lo dia sim, dia não, chamou para trabalhar com ele pessoas das mais variadas tendências políticas, e essencialmente mostrou que é possível aliar democracia com combate à desigualdade social.

Serra Negra, esta pequena cidade do Circuito das Águas Paulista, se beneficiou dos governos do PT, como o resto do Brasil. Seus empresários ficaram mais ricos, seus trabalhadores conseguiram melhorar de vida. 

Nos últimos anos, porém, a cidade não escapou da crise vivida por todo o país. Tudo piorou depois de 2016. A tímida recuperação que se verifica agora não chegou aos mais pobres, aos funcionários das lojas, dos bares e restaurantes, dos hotéis e pousadas. 

Diante disso, seria natural pensar que a Serra Negra de hoje é quase igual à cidadezinha do Vale do Pó governada pelo comunista Peppone, na sua luta para se reerguer, no dia a dia difícil vivido pelos seus moradores e no papel político que a Igreja exerce na comunidade - sim, porque aqui temos o nosso Dom Camillo, ou o seu arremedo.

Aqui, como na obra de ficção, o pároco fustiga na missa, nestes dias que antecedem as eleições, os esquerdistas, os abortistas, os que querem mudar para vermelho a cor da bandeira nacional, numa clara referência à candidatura presidencial da coligação liderada pelo ex-presidente Lula. 

O Dom Camillo serrano usa a mesma verborragia do atual presidente e seus seguidores, plena de ódio contra o "inimigo", no caso esses esquerdistas causadores de todos os males do mundo.

O Dom Camillo de Guareschi, porém, atacava comunistas de verdade, não imaginários. E, da mesma forma, não tolerava os fascistas.

O Dom Camillo de Guareschi, que só existe nos livros e nos filmes, é, portanto, mais lúcido que o Dom Camillo serrano, que parece viver num mundo irreal dominado por cruéis esquerdistas sedentos do sangue da harmoniosa, pacífica e feliz família brasileira.

A literatura, como se vê, tem muito a nos ensinar.

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Carlos Motta é jornalista profissional diplomado (ex-Estadão, Jornal da Tarde e Valor Econômico) e editor do Viva! Serra Negra





Comentários

  1. Excelente artigo. Os filmes são ótimos com o comediante francês Fernandel. Pena que na vida real ainda exista uma igreja que defenda fascistas. Não são apenas os evangélicos.

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