//LITERATURA// Serra Negra inspira contos de livro que será lançado na cidade

Arthur Araújo: "Os textos surgem do diálogo com outros
textos, do diálogo com a história da literatura, com a forma
como a literatura me ensinou a olhar o mundo"

 

O escritor Arthur Araújo realizará no dia 4 de dezembro o lançamento de seu livro "Fantasma Voyeur" na Casa da Cultura e Cidadania Dalmo de Abreu Dallari. Sua primeira obra literária, publicada este ano pela editora Oficios Terrestres, foi escrita em 2019, mas ao longo de 2020, durante a pandemia de covid-19, Arthur se dedicou à sua revisão, que resultou na mudança do título e lhe deu a forma publicada em 2021.  

Arthur nasceu em Campinas, mas passou a infância e a adolescência em Serra Negra, de onde só saiu quando ingressou na Faculdade de Letras da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde atualmente cursa mestrado em Teoria Literária.

As imagens de Serra Negra inspiraram pelo menos duas histórias: "Assassinar Turistas" e "Uma Fantasia Rural". A obra não é autobiográfica. Os contos foram escritos com base em imagens de textos ou captadas na cidade, em gestos de pessoas e cenas de filmes.

“Meus textos surgem do diálogo com outros textos, do diálogo com a história da literatura, com a forma como a literatura me ensinou a olhar o mundo”, diz.

Arthur explica que Serra Negra ofereceu as imagens que precisava para escrever os textos. “Mas não há nada nos textos que dizem diretamente da cidade." "Assassinar Turistas" conta a história de uma cidade cuja principal fonte econômica é o turismo, mas essa atividade econômica se dá às custas da depredação do município pelos visitantes.

“Esse tipo de exploração das cidades tem sido discutido em diversos setores da sociedade e, por exemplo, há alguns anos houve uma séria rejeição aos turistas em cidades como Veneza, que dependem do turismo, mas a atividade turística vem depredando a cidade e tornando inabitável para os cidadãos que habitam ali”, explica.

Em "Uma Fantasia Rural", a história se passa numa cidade com uma pequena área urbana cercada por uma maior área rural, com produtores rurais e agricultura familiar. Nessa cidade, um casal homoafetivo dirige uma pequena propriedade rural.

Arthur relata a rotina de trabalho do casal, como eles se relacionam nesse ambiente e com o ambiente. “É um texto mais melancólico ou melodramático, que encerra o livro. Poderíamos ver Serra Negra nessa cidade sem nome, mas também outras inúmeras cidades no interior do país”, ressalva.

Em todas as histórias há um olhar voyeur do fantasma que vê tudo sem ser visto, observando principalmente a casa, a família e o mundo. O desenho da capa é de autoria da artista Giulia Renzo, que também apresentará seus trabalhos, junto com Henrique Vasconcellos, numa exposição na Casa da Cultura e Cidadania Dalmo de Abreu Dallari, a partir de 4 de dezembro.

A seguir, a íntegra da entrevista de Arthur Araújo ao Viva! Serra Negra:

Viva! Serra Negra -  O livro foi escrito durante a pandemia. Acho que você já tinha essa ideia anteriormente, uma vez que um dos contos fala justamente sobre o desejo de ser escritor desde a infância. Conte como surgiu essa obra.

Arthur - O livro, na verdade, não foi escrito durante a pandemia, a maior parte foi escrita em 2019, mas há textos mais antigos. No final de 2019, a Oficios Terrestres Edições selecionou meu livro para publicação no começo de 2020, mas ao longo de 2020 eu fiz uma extensa revisão - o livro até mudou de nome - para chegar à forma que chegou para ser publicado. O livro surgiu a partir de uma pesquisa sobre a rua, sobre a cidade e os espaços públicos como espaços de disputa e intervenção política e a casa surgiu como o suposto reverso do espaço público, a casa como o suposto lugar de recolhimento, de individualidade, de intimidade. Destaco o "suposto" porque a casa não é esse lugar de bem-estar e conforto. Acho que a pandemia de covid-19 nos fez pensar bastante nisso, sobre como o perigo pode invadir a casa a qualquer momento, como todos nós nos sentimos aflitos com medo de o vírus invadir o espaço seguro da casa, como a casa foi "contaminada" pelo perigo que vinha de fora. Por outro lado, ficar confinado em casa foi bastante desconfortável, uma espécie de prisão, e isso para quem podia ficar em casa, para quem tinha uma casa para se proteger. É só pensarmos também como a grande maioria das violências contra as mulheres e as crianças acontecem dentro da casa, perpetradas por algum homem da família. A casa não é esse refúgio que a gente gostaria de imaginar. Eu já me interessava por pensar essas coisas, que tantas outras pessoas já pensaram antes de mim, e eu fui desdobrando em outros temas. Sobre a outra questão, você afirma na sua pergunta que, em um dos contos, eu digo que tinha o desejo de ser escritor desde a infância, mas não sou eu quem diz, é o narrador do texto quem diz, e não podemos confundi-lo com o autor só porque o narrador diz "eu" ou porque o nome do personagem coincide com meu nome. Se a literatura pode nos ensinar algo é a desconfiar das coisas.

Viva! Serra Negra - Queria que você falasse um pouco sobre a estrutura do livro, dividido basicamente em três etapas ou capítulos. O que você pretendeu com essa divisão?

Arthur -  O livro é dividido em três seções, como você disse. A primeira se chama "Unheimlich", que é um conceito em alemão do Sigmund Freud, geralmente traduzido como "inquietante" ou, numa tradução que tenta explicitar sua ambiguidade, "estranho familiar". Seria uma das formas de caracterizar ou descrever o inconsciente como essa "coisa" que resiste a se apresentar e, quando se manifesta, por sonhos, atos falhos etc, ou retorna como o retorno do recalcado, se manifesta de uma maneira que nos causa espanto, estranhamento, justamente por sua familiaridade que nós desejamos, inconscientemente, manter escondida para não nos importunar. A segunda parte "Lembranças Encobridoras" também é um conceito freudiano e seriam lembranças imaginadas, falseadas justamente para encobrir as lembranças "verdadeiras", porque estas seriam insuportáveis de serem rememoradas, por isso se manteriam longe da nossa lembrança. O título da terceira parte, "Histórias de Violência", é quase uma brincadeira com o "História da Sexualidade", do Michel Foucault  - há alguns anos o MASP também apresentou uma exposição que levava o título de "Histórias da Sexualidade". Os três títulos têm uma relação com diferentes formas de narrativas, o Unheimlich freudiano surge a partir do conto "O Homem de Areia", do E.T. A. Hoffman, considerado um dos primeiros contos de terror. Há no meu livro narrativas de sonhos, textos de diários, relatos domésticos, diferentes contos sobre maneiras diferentes de habitar diferentes espaços, diferentes narrativas sobre diversas formas de violência e o imbricamento entre sexualidade e violência que a gente aprendeu a ver com Georges Bataille - ou a pulsão sexual e pulsão de morte, com o próprio Freud. De qualquer maneira, essas divisões são sempre mais ou menos arbitrárias e tantas outras poderiam ser feitas, mas eu pretendi ressaltar a diversidade de textos em suas diversas formas de narrar.

Viva! Serra Negra - A casa é um dos principais temas, o autor do posfácio,Leonardo Novo, também destaca isso. Conte um pouco sobre essa ideia da casa e como ela perpassa várias histórias, quando não é a própria protagonista.

Arthur - A casa pode ser lida de diversas maneiras no livro: a casa como o lugar onde a gente mora, mas cada um mora numa casa diferente e de maneira diferente, varia de acordo com sua família ou com as pessoas com quem você coabita, se mora em prédio, em casa, numa grande metrópole, numa aldeia indígena. A gente não percebe, mas a forma como a gente mora determina a nossa forma de se relacionar consigo e com o mundo, se uma família mora num único cômodo o casal não tem muito espaço para intimidade sexual, ou o sexo é feito em frente aos filhos, e os filhos não têm espaço para descobrir sua "individualidade" - essa criação burguesa na revolução industrial -, porque está sempre acompanhado, ou se você mora numa aldeia indígena há certa divisão de tarefas e coletividade de espaços diferente de quem mora num apartamento e mal conhece seus vizinhos de corredor. Olhar de novo e de maneira diferente para as coisas no mundo que são naturalizadas, que são tomadas como naturais porque sempre foi assim, é uma forma de "ler o mundo", para falar com Paulo Freire, mais enriquecedora ou pelo menos mais estranhada, e aqui "estranho" tem seu valor absolutamente positivo. A casa também pode ser lida de maneira metafórica como o mundo, como as tradições que nos transmitem e muitas vezes são coercitivas, castradoras e que nos ensinam a sermos predatórios com o outro, pode ser lida também como a própria literatura e sua história literária. Podemos estender esse olhar para estranhar todas as coisas, olhar de novo essas coisas que nos são transmitidas sem questionamento, simplesmente porque "sempre foi assim", porque tudo há uma história e, portanto, pode ser transformado. A figura do fantasma e do voyeur no título, que podem ser lidos como dois substantivos ou então como um substantivo ("fantasma") e um adjetivo ("voyeur") para o substantivo, são figurações do olhar, seja o fantasma do filme de terror que fica à espreita vigilante, pronto a assustar suas vítimas, seja o voyeur que se satisfaz ao observar à certa distância a atividade sexual alheia. Essas duas figuras implodem a figuração da casa como o espaço de intimidade e segurança que se quer da casa: o fantasma como a presença muito próxima que aparece dentro da casa sem ser convidada e o voyeur que à distância invade a intimidade com seu olhar curioso.

Viva! Serra Negra - Você tem um estilo muito próprio de escrita. Como você desenvolve esse estilo e no que você se inspira.

Arthur - Não saberia dizer se tenho um estilo próprio, mas agradeço o elogio. O estilo se adquire com a prática, com o exercício da escrita, escrita não é inspiração e insight, muitos já disseram, com decisões estéticas que temos que tomar a cada palavra e decidir se aquela escolha é a certa para contar daquela maneira a história que queremos contar. E sustentar essa decisão, porque a história poderia ser contada de diferentes maneiras, um texto poderia ser escrito de outra forma e seria então outro texto. No momento em que revisava o livro, recebi uma "dica" da Veronica Stigger, uma das maiores escritoras brasileiras, uma grande referência no conto contemporâneo, que me disse para tentar entender qual foco narrativo a história precisa ser contada para se alcançar o que se deseja, se um tom mais melancólico ou mais contido, entre outras decisões dos outros elementos narrativos. Tudo isso para dizer que a gente só escreve escrevendo, reescrevendo e escrevendo de novo. Sobre minhas inspirações, eu chego ao conto de uma maneira bastante lateral, não com os clássicos do conto, como Clarice Lispector ou Jorge Luis Borges, para ficar entre os latino-americanos, mas com as pequenas narrativas de Franz Kafka, que muitos não consideram contos. Kafka é fundamental para mim e isso aparece no livro de diversas maneiras, até na forma de um roubo absoluto de um de seus textos na forma de uma reescrita. Eu poderia fazer uma lista de autores e autoras que me inspiraram, mas isso não daria conta de traçar uma genética da minha escrita. O que me mobiliza de maneira geral são as questões e problemáticas do nosso tempo: o que é digno de ser narrado quando vivemos num tempo de proliferação de narrativas, quando tanto já foi dito, como enfrentar o capitalismo e as formas de subjetividade contemporâneas que têm nos esgotado e nos feito egoístas, como não fazer da literatura e da cultura um aliado às formas nocivas de exploração do ser humano, como foi durante tanto tempo e até hoje parte da história da literatura. A literatura pode ser um espaço privilegiado para pensar as questões do mundo, não na forma de uma ilustração de uma questão do mundo, como se o valor da literatura fosse seu referencial com o exterior do texto, mas porque pensar o mundo através da literatura pode nos fazer olhar de novo para o mundo. Se é que a literatura tem algo a nos ensinar.

Viva! Serra Negra - Falando em inspiração há citações de vários escritores na sua obra. Como você escolheu as citações e escritores e qual é a influência deles no seu trabalho.

Arthur - Há alguns textos que só existem por causa das epígrafes, como o texto "O brilho dos Objetos" com as epígrafes do Herbert Daniel e da Mariana Paiva, e há epígrafes que só foram colocadas num último momento, como a epígrafe do Ailton Krenak em "Casa em Chamas" e a citação de um manifesto anarquista de um grupo francês em "Casa de Areia". Em outros textos a epígrafe e a citação se desdobram como um complemento do texto porque eu não poderia dizer melhor, como em "Ulisses em Alto Mar" com a citação da Teoria do Drone, de Grégoire Chamayou, que também está na epígrafe do livro, e as citações de Ana Martins Marques, bell hooks e Michel Foucault em "Sedentarismo e Habitação". A política de citação parte de uma demanda do próprio texto, se a epígrafe ajuda a organizar e sustentar o texto ou se o texto se sustenta de maneira independente. Por vezes não são autores com quem eu não tenho tanta intimidade, como Clarice Lispector, mas outras vezes são de autores fundamentais para mim e que me acompanham ao longo das minhas pesquisas, como Hilda Hilst e João Gilberto Noll.

Viva! Serra Negra - Duas histórias você diz que tem a ver com Serra Negra. Queria que você falasse um pouco sobre cada uma delas e qual a ligação delas com a cidade?

Arthur - Duas histórias têm a ver com Serra Negra porque a cidade me ofereceu imagens que eu precisava para escrever os textos, mas não há nada nos textos que dizem diretamente da cidade. No texto "Assassinar Turistas", nós temos uma cidade cuja principal fonte econômica é o turismo, mas essa atividade econômica se dá às custas da predação da cidade por esses turistas que consomem na cidade, "consomem" a cidade, como uma fonte inesgotável e infindável, sem pensar que há cidadãos ali e aquele é um lugar onde pessoas moram e não um resort. Esse tipo de exploração das cidades tem sido discutido em diversos setores da sociedade e, por exemplo, há alguns anos houve uma séria rejeição aos turistas em cidades como Veneza, que dependem do turismo, mas a atividade turística vem depredando a cidade e tornando inabitável para os cidadãos que habitam ali. No texto, alguns cidadãos tomam uma decisão para lidar com os turistas, como o título do texto pode nos fazer imaginar. Em outro texto, "Uma Fantasia Rural", nós temos uma cidade com uma pequena área urbana cercada por uma maior área rural, com produtores rurais e agricultura familiar. Nessa cidade, um casal homoafetivo dirige uma pequena propriedade rural e nós acompanhamos a rotina de trabalho do casal, como eles se relacionam nesse ambiente e com o ambiente. É um texto mais melancólico ou melodramático, que encerra o livro. Poderíamos ver Serra Negra nessa cidade sem nome, mas também outras inúmeras cidades no interior do país.

Viva! Serra Negra - Sua obra tem um pouco, me parece, de autobiográfico e de ficção. É isso? Como você cria as suas histórias?

Arthur - Eu desconfiaria de qualquer leitura ou texto que se propõe autobiográfico, porque desconsidera o trabalho estético, o trabalho de elaboração de uma ideia no objeto artístico, o trabalho de criação propriamente, porque considera que o trabalho artístico é simplesmente uma transposição de questões íntimas, psicológicas e individuais e não um modo de intervenção no mundo e na sociedade. Há sempre elaboração estética no processo de escrita, para não dizer do falseamento, a ficcionalização deliberada ou autoficção, para dizer de um conceito bastante caro para a crítica literária contemporânea, mas com o qual eu tenho meus limites. Dito isto, acho que há a tentação de ler os textos como autobiográficos, mas é necessário olhar novamente para o texto, mesmo os supostos textos de diário, os textos em que o nome do personagem coincide com o nome do autor. Meus textos surgem do diálogo com outros textos, do diálogo com a história literatura, com a forma como a literatura me ensinou a olhar o mundo. Mas geralmente meus textos surgem de uma imagem, seja uma imagem vista num texto, seja uma imagem captada na cidade, o gesto de alguém, a cena de um filme, e eu tento criar uma história para aquela imagem ou colocar a imagem numa história que eu gostaria de contar.

Viva! Serra Negra - Sobre a capa das sereias e o tema sereia presente no livro, qual é o significado?

Arthur - A sereia é uma imagem que atravessa toda a história da literatura e da cultura, temos o encontro de Ulisses com as sereias na "Odisseia" - recontada e transgredida por Kafka num texto chamado "O silêncio das Sereias", que, como o título prevê, imagina o que aconteceria se as sereias ficassem em silêncio - até a animação da Disney. Mas temos também diversas histórias indígenas com sereias, como a Iara, e, também em religiões afro-brasileiras. Iemanjá em algumas histórias é descrita como metade mulher e metade peixe. A figura da sereia condensa e faz coabitar no mesmo corpo a suposta contradição da sedução e da violência, a sereia é ao mesmo tempo sedutora e assassina. E é se debatendo entre a sedução e a violência que a gente faz muita coisa na nossa vida. O desenho na capa é de autoria de uma grande amiga, Giulia Renzo, também de Serra Negra, e é um dos rascunhos que quase foi descartado, mas foi resgatado para parar na capa do livro. Eu gosto de ver no desenho um bando de sereias que sai em busca de sedução e/ou vingança, ou que espera o momento de atacar. O Gabriel, editor do livro, vê diversos tempos da mesma sereia colocados lado a lado, os vários tempos do mesmo ser existindo simultaneamente. A Mariana Ruggieri, pesquisadora em literatura que assina a orelha do meu livro, chamou as figuras de sereias-fantasmas.

Viva! Serra Negra - Como está sendo vendido o livro e onde o leitor pode adquiri-lo?

Arthur - O livro pode ser comprado no site da Ofícios Terrestres Edições no link  https://www.oficiosterrestres.com.br/produto/300755/fantasma-voyeur-contos-de-arthur-araujo ou comigo, para quem quiser entrar em contato nas redes sociais.



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