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Debate na Casa da Cultura e Cidadania Dalmo Dallari apontou as dificuldades enfrentadas pelas mulheres serranas |
Salete Silva
A situação é agravada pela carência de políticas públicas voltadas para tirar crianças e adolescentes, em especial meninas, de situação de risco e facilitar a vida das trabalhadoras serranas que não contam com creches aos fins de semanas, feriados e férias, período de maior carga de trabalho no município, que tem sua economia sustentada pelo turismo.
Assim se resume a realidade das mulheres em Serra Negra, apresentada em relatos e depoimentos das participantes de um debate inédito sobre a mulher em Serra Negra, realizado, sábado, 7 de março, na Casa da Cultura e Cidadania Dalmo de Abreu Dallari.
O conceito de que a vida doméstica é inerente às mulheres sobrevive ao longo das últimas gerações, embora elas estejam presentes em praticamente todas as áreas do mercado de trabalho da cidade, seja no comércio ou nos serviços, principais atividades econômicas do município.
Sem ou com baixas expectativas de cursar uma universidade, o casamento aparece como alternativa iminente de vida para muitas jovens serranas.
Érica: casamento como primeira opção |
“Essa é uma vivência transmitida pela avó à mãe e pela mãe às filhas”, afirma. As mães, ela constata, parecem considerar natural que as filhas saiam de casa, ainda muito jovens, para morar com o namorado.
O casamento como primeira opção e a faculdade em segundo lugar, Érica avalia, é um pensamento de meninas de classes sociais mais baixas e também das de classe média cujas famílias têm condições financeiras para arcar com os estudos.
A cultura de que o trabalho doméstico é responsabilidade das meninas é constatada pela professora Neusa Kapor, presidenta do PT de Serra Negra, entre as alunas das escolas em que atua ou atuou ao longo de mais de 40 anos de profissão.
“Muitas meninas dizem que não gostam dos feriados porque quando ficam em casa são obrigadas a ajudar na faxina ou nos cuidados com os irmãos menores”, revela.
Neusa: trabalho doméstico é com as meninas |
As meninas, constatam as professoras, começam a trabalhar mais cedo, cuidando de algum parente ou vizinho, enquanto os meninos têm mais tempo livre até para pensar sobre o futuro.
O papel da mulher como cuidadora em Serra Negra não é diferente do que ocorre no mundo, segundo o estudo “Temos de cuidar”, da ONG Oxam, instituição internacional que desenvolve projetos e campanhas para a redução da desigualdade social.
Segundo o estudo, as mulheres fazem mais de 75% de todo o trabalho de cuidado não remunerado do mundo.
Com isso, trabalham menos horas em seus empregos ou têm de abandoná-los por causa da carga horário com cuidado. Sua renda, portanto, é menor do que a dos demais trabalhadores.
Quando desenvolvem alguma atividade profissional, mesmo em áreas mais bem remuneradas, as mulheres em Serra Negra enfrentam preconceitos, como o relatado pela advogada Marina Mendonça Luz Ricci.
Marina: preconceito na profissão |
“Ele perguntou se não havia possibilidade de me trocar por um outro profissional, porque disse ter informado, ao fazer o cadastro na OAB, que não queria ser atendido por uma mulher”, relata.
O serviço de defensoria pública é gratuito, oferecido pelo Estado, e Marina o aconselhou a contratar um escritório de advocacia, se preferisse outro profissional. Pediu a ele que assinasse um documento dizendo que dispensava a defensoria.
A desqualificação profissional das mulheres é outro problema também mundial. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), divulgado semana passada, revela que 90% dos homens e das mulheres têm visões negativas sobre o papel das mulheres na política, no mercado de trabalho e até na vida familiar.
Pici: falta solidariedade |
“A mulher cursou a mesma faculdade, o mesmo tempo, estudou do mesmo jeito que os homens, mas as próprias mulheres se recusam a ser atendidas por médicas e não admitem que há preconceito, mas há sim”, acrescenta.
Falta solidariedade entre as mulheres, constataram as participantes do debate. Essa constatação foi evidente no caso polêmico que viralizou nas redes sociais do município: o da denúncia contra o canil Amigo Bicho.
Responsável pelo canil, a veterinária Daniela Aparecida dos Santos sofreu acusações de maus tratos. Mesmo sem uma ação ou sentença de acusação judicial, Daniela foi xingada e desqualificada pelo vereador, autor da denúncia no Facebook, e por serranos, entre os quais mulheres.
Daniela entrou com uma ação indenizatória por danos morais e ação criminosa. O juiz condenou os réus com multas que variaram de R$ 1 mil a R$ 10 mil. Os réus recorreram e o processo está em andamento. “Mesmo que ela tivesse sido condenada, não justifica o xingamento”, diz Marina.
Ataques misóginos a mulheres em destaque também fazem parte da realidade feminina no âmbito nacional, como os que receberam recentemente jornalistas que confrontaram o governo Bolsonaro, entre as quais Patrícia Campos Mello, da Folha de S. Paulo.
“A mulher em posição de destaque sempre tem de ser rebaixada”, diz Érica, que recentemente foi atacada nas redes sociais quando tomou posse no Conselho Municipal de Cultura.
“Eu e dois outros novos integrantes temos o mesmo posicionamento político progressista, mas só eu tive minha foto compartilhada pelos serranos conservadores contrários à nossa participação nas políticas voltadas para a cultura”, relata.
São inegáveis as conquistas femininas nas últimas décadas, mas a jovem estudante de psicologia Poliana Aparecida Marcondes de Almeida, 20 anos, nascida em Serra Negra, diz que é muito lento o processo de desconstrução da ideia tradicional e conservadora da mulher.
“Há meninas que conseguem quebrar essa reprodução de machismo, mas há meninas que ainda alimentam esse sistema”, afirma. Ela salienta, no entanto, que essas meninas são vítimas do sistema que construiu esse pensamento que limita a mulher.
“Com relação à roupa, por exemplo, nunca me senti à vontade para usar algo mais curto ou decotado porque fui criada de um jeito que me fazia sentir culpada”, afirma.
Na universidade onde estuda, Poliana e as amigas criaram um grupo de apoio e ajuda mútua para que possam enfrentar as situações de machismos e preconceitos.
As famílias ainda diferenciam a educação de filhas e filhos, segundo relato da professora de música Renata Santos Pinheiro, do projeto Guri.
Uma aluna foi proibida pelo pai de frequentar o curso de música porque foi flagrada por ele andando de mãos dadas com um garoto num horário próximo ao do curso.
“Os dois irmãos não são punidos da mesma forma e podem frequentar o curso”, compara a professora.
As políticas públicas, na opinião das mulheres serranas, não contribuem para mudar esse quadro. Ao contrário, faltam investimentos em atividades culturais e de lazer para tirar os jovens em situação de risco e proporcionar oportunidades de trabalho e estudos.
Falta também, na opinião das mulheres, um olhar dos políticos, em especial da Câmara Municipal, para a nova realidade feminina no Brasil e no mundo.
“Não tenho conhecimento de nenhum projeto na Câmara para as mulheres, mas se tiver, será para as mulheres que estão dentro do perfil que os vereadores costumam homenagear: mulher mãe de família, casada há 40, 50 anos”, afirma Érica.
Falta ainda, lembra Pici, oferta de serviços básicos, como creches aos fins de semana e férias. “É possível, sim, encontrar uma solução para que as creches tenham um funcionamento ininterrupto, como dar férias aos funcionários em meses diferentes”, sugere.
Há ainda como solução para isso, rodízio e bancos de horas para as férias das funcionárias das creches, sugeriu Marina.
A advogada lembrou ainda da situação precária da delegacia, que, além de ter apenas um funcionário para atender os casos relativos à mulher, está com problemas na estrutura do prédio, onde chega a faltar até papel higiênico.
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