//CIDADANIA// A luta da Guarda Mirim para dar esperança aos jovens

Vito Sapuppo: "Este governo quer acabar com tudo em relação aos pobres"

Salete Silva

Todos os dias às 7h15 da manhã cerca de 40 crianças de 11 a 13 anos já estão tomando café da manhã na Guarda Mirim de Serra Negra para iniciar mais um dia de atividades. Depois do almoço por volta das 11 horas, elas seguem para suas escolas de ensino regular.

À tarde chega uma outra turma. Nas segundas-feiras, à tarde, a atenção é especial para o grupo de adolescentes trabalhadores que chega ao meio dia para almoçar e frequentar o curso que lhes dará a formação de auxiliar administrativo.

A maioria é de meninos (65%) de famílias com renda mensal de até dois salários mínimos, 27% criados apenas pelas mães, na maioria faxineiras, donas de casas ou trabalhadoras no mercado informal.

Mais da metade, 52%, não mora com pai e mãe na mesma casa. Muitos frequentam a Guarda Mirim por causa das refeições.

Há espaço para acolher pelo menos 170 crianças e adolescentes, quase a metade do que a Guarda tem atendido por falta de recursos públicos e colaboração dos empresários serranos, que rejeitam a ideia de liberar os jovens, uma vez por semana, para frequentar o curso de capacitação.

A Lei do Jovem Aprendiz impõe recolhimento de 20% referentes ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e 2% de Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS).

“Mas onde a coisa pega é que os empresários não aceitam que as crianças fiquem aqui um dia estudando. Eles querem os cinco dias de trabalho, diz Vito Sapuppo, presidente da Organização da Sociedade Civl (OSC) Guarda Mirim.

“Os empresários de Serra Negra não querem fazer esse trabalho social. Preferem contratar um jovem de 20 anos e registrar por conta própria”, acrescenta.

Nascido na Itália, o professor de história, 73 anos, reside em Serra Negra há 16 anos. Logo que chegou à cidade em 2003, Sapuppo foi diagnosticado com câncer de intestino.

Durante o duro tratamento marcado por algumas intercorrências, Sapuppo fez a promessa de se dedicar ao voluntariado depois de recuperado.

“Um mês depois de ser operado, vi um anúncio no jornal "O Serrano" pedindo voluntário para a Guarda Mirim”, relata.

Em dezembro de 2003, depois de seis meses dando aulas voluntárias de história, o professor assumiu a presidência da Guarda Mirim, cargo que ocupa há 16 anos.

A Guarda Mirim tem uma lista de espera de 170 crianças e pode fechar as portas se o governo federal mantiver a política de corte de gastos na área social e se os empresários serranos não se sensibilizarem para a importância de empregar e capacitar os jovens.

A seguir a íntegra da entrevista que Sapuppo deu ao Viva! Serra Negra:

Viva! Serra Negra - As crianças aqui têm qual idade?
Sapuppo – de 11 a 17 anos. No dia que faz 18 anos é automaticamente excluída. Chegamos a ter 100 crianças trabalhando de 14 a 17 anos. Hoje, temos 10, porque os empresários não querem se enquadrar na lei.

Viva! Serra Negra - O senhor acha que a lei dificulta a contratação?
Sapuppo – Essa lei é triste. É uma lei federal e é aplicada tanto em Campinas, que tem pouco mais de 1 milhão de habitantes, como em São Paulo que tem mais de 12 milhões de habitantes, e Serra Negra que tem 28 mil habitantes. Aqui, quase não temos empresas.

Viva! Serra Negra – O senhor acha que as empresas de Serra Negra têm condições financeiras para contratar dentro da lei?
Sapuppo – Têm. A lei não é o problema. O problema são os empresários. Os supermercados poderiam contratar. O Supermercado União chegou a ter dez crianças e hoje não tem nenhuma.




Viva! Serra Negra – Qual é o custo para as empresas manterem essas crianças?
Sapuppo – 20% de recolhimento de Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e 2% de Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Mas onde a coisa pega é que eles não aceitam que as crianças fiquem aqui um dia estudando. Eles querem os cinco dias. Tinha uma rede de supermercado que tinha 28 adolescentes, hoje tem uns três ou quatro. Outros supermercados, como o União, demitiram todos. Eles não aceitam.

Viva! Serra Negra – O senhor acha que falta conscientização à classe empresarial de que essa iniciativa capacita jovens e contribui para melhorar o nível educacional dos trabalhadores?
Sapuppo – Fiz três reuniões com gerentes e donos de supermercados, eles estão cansados de saber, os contadores conhecem, falei com o chefe de Recursos Humanos. O atual gerente do Supermercado União foi o primeiro adolescente inscrito aqui por mim, que começou na área de pacotes e hoje é gerente. O dono do União esteve comigo uns 13 anos atrás, dizendo que ele gostava de fazer esse trabalho. Mas isso mudou com a mudança da lei.

Viva! Serra Negra – Há 13 anos, não havia essa exigência de um dia de treinamento?
Sapuppo – Não, não existia. Entramos em contato com a matriz do União em Pinhalzinho, falamos com o pessoal aqui, com as outras redes de supermercados, mas não teve jeito.

Viva! Serra Negra – O treinamento seria qualquer dia da semana ou tem um dia específico?
Sapuppo – Seria a segunda-feira. Achamos melhor a segunda, porque tem menos movimento no comércio de forma geral. Mas não aceitam. Os empresários, não vou generalizar, mas a maioria dos empresários de Serra Negra não abre mão disso. Chegou ao meu conhecimento que empresários disseram “que absurdo, tenho de pagar cinco dias para a criança e ela só trabalha quatro dias”. Mas fiquei sabendo que um menino no estabelecimento do empresário que disse isso, em vez de trabalhar seis horas, trabalhava nove, dez horas. Não pode e além disso essa criança quase não estava frequentando o curso.

Viva! Serra Negra – Os empresários e também os turistas se queixam da falta de formação e capacitação dos trabalhadores em Serra Negra. O senhor não acha que essa falta de capacitação não reflete a pouca disposição do empresário em investir na sua mão de obra?
Sapuppo – Claro. Se quisessem investir, deixavam as crianças vir aqui.

Viva! Serra Negra – Como é esse curso de administração?
Sapuppo – Esse curso de administração tem 17 disciplinas, como inclusão digital, formas alternativas de geração de trabalho, administração, saúde sexual, diversidade cultural, educação para o consumo, raciocínio lógico, educação fiscal, entre outras. Para ministrar essas disciplinas, preciso pagar professores de acordo com o estabelecido pela lei. Para fazer economia, voltei para a sala de aula para ministrar algumas disciplinas. Para evitar de ter mais despesas.


Curso de administração da
Guarda tem 17 disciplinas
Viva! Serra Negra – Como é mantida a Guarda Mirim? De quem a instituição recebe recursos?
Sapuppo – Somos a única entidade de Serra Negra que recebe uma verba do governo de São Paulo. Essa verba é de R$ 3.751,00 por mês. Da prefeitura recebemos R$ 3.333,00. Dá em torno de R$ 7 mil mensais. Nossos recursos próprios, antes da lei do Jovem Aprendiz, chegavam a R$ 14 mil. Hoje, nossos recursos próprios estão em torno de R$ 3.600,00.

Viva! Serra Negra – Como a Guarda Mirim está sobrevivendo?
Sapuppo – Tive de demitir funcionários, reduzir a jornada de trabalho e os salários dos que ficaram. Alguns dos funcionários que continuaram acabaram ficando com a mesma jornada, só que com salário menor. Se não fosse o Ministério Público, a Guarda Mirim já teria fechado.

Viva! Serra Negra – Qual é a ajuda do Ministério Público?
Sapuppo – O MP nos ajuda com mantimentos. Este ano, não gastamos com arroz, feijão, leite, óleo. O Fundo Social mandou leite, salsicha, frango. Se não fosse essa ajuda, teria fechado.

Viva! Serra Negra – Qual é a receita mensal hoje da Guarda Mirim?
Sapuppo – Temos dez funcionários. A receita mensal que era em torno de R$ 18 mil caiu para R$ 11 mil e a despesa está em R$ 15 mil. Com relação ao ano passado, nossa receita diminuiu para R$ 6 mil. Se não tivesse ajuda do Ministério Público, embora as despesas não tenham aumentado, teríamos fechado.

Viva! Serra Negra – Quantos adolescentes a Guarda Mirim atende?
Sapuppo – Atendemos 90 adolescentes e 170 estão na lista de espera.

Viva! Serra Negra – Qual é a rotina dessas crianças que frequentam a Guarda Mirim?
Sapuppo – Na segunda-feira, elas vêm em dois turnos e almoçam aqui. Mas todos os dias temos atendimento. As que vêm de manhã estudam à tarde e são do ensino fundamental II. Elas chegam às 7h45, tomam café da manhã e vão para a aula. Termina a aula às 11h15, vão almoçar. Almoçam e vão para a escola. Meio dia almoçam eu e os funcionários. Uma hora chegam as crianças que estudam de manhã e são do ensino médio. Almoçam e vão para a aula. Na segunda-feira, vêm só as crianças que trabalham porque elas ficam o dia inteiro e não dá para misturar. Servimos 80 refeições por dia.

Viva! Serra Negra – Como são assinados os contratos de trabalho?
Sapuppo – Quem assina as carteiras de trabalho é a Guarda Mirim. A prefeitura tem cinco crianças trabalhando lá, mas a carteira quem assina sou eu.

Viva! Serra Negra – Hoje o senhor tem dez adolescentes empregados. Qual era a média anteriormente?
Sapuppo – A média era 80. Elas trabalhavam antes 7 horas e ganhavam pelo salário mínimo. Hoje, elas são horistas, não são mensalistas. No mês de fevereiro, com 28 dias, elas têm um salário. No ano bissexto, que tem 29 dias, recebem por 29. Quando o mês tem 30 dias, recebem por 30. Isso significa que o salário mínimo é R$ 998, a média salarial delas é pouco mais de R$ 700.


Guarda atende 90 crianças
e tem 170 na fila de espera
Viva! Serra Negra – E outra exigência é que elas estejam matriculadas e frequentando a escola regular?
 Sapuppo – Exatamente. Analiso as médias e as faltas, faço reunião com os pais e acompanho a vida acadêmica delas muitas vezes mais de perto do que os pais.

Viva! Serra Negra – Qual é o perfil dessas crianças?
Sapuppo – A média dos salários da família não chega a dois salários mínimos. Fazemos os dados a cada dois anos. O último é de 2017, porque o de 2019 não está pronto ainda. A maioria das crianças, ou seja 65%, é de meninos, porque eles querem mais do sexo masculino para o mercado de trabalho. A média da faixa etária é 15 anos. A maioria, 70%, é de alunos do Jovino Silveira. A escolaridade dos pais é ensino fundamental incompleto e completo, um total de 46%. Os que têm ensino médio completo são 18% e 14% incompleto. Apenas 2,25% tem nível superior.

Viva! Serra Negra – Como é a família dessas crianças?
Sapuppo – Vivem com o pai e com a mãe 47%. Com a mãe e o padrasto, 15%. Só com a mãe, 27%. Pai e madrasta, 3%. Não mora com os pais, só com os avós, 6%. Mais da metade, 52,5%, não moram com pai e mãe. São famílias desestruturadas. As profissões dos pais são serviços braçais, como trabalho geral, pedreiro, motorista e outros. A maioria das mães que trabalham são diaristas e 38% estão em função denominada outras. Não têm mercado de trabalho. A quantidade de irmãos diminuiu. Mais de três filhos, 18%. Filho único, 10%. Um dos dados que chamam atenção é que 100% têm celular.

Viva! Serra Negra - Onde moram as crianças?
Sapuppo – A maioria vem da Nova Serra Negra, Bairro das Posses e Refúgio. Do Centro vem 20%. E os demais do Palmeiras, Vila Dirce e Colina. Cerca de 22% vem de bairros mais distantes, que levantam às 6 horas da manhã. Admiro que elas vêm, porque não tem obrigação.

Viva! Serra Negra – Muitos vêm por causa da refeição?
Sapuppo – Sim, muitos vêm para almoçar, em especial os da tarde. Tem crianças que enchem o prato e repetem.

Viva! Serra Negra – O senhor vê perspectiva de mudança nessa situação?
Sapuppo – Sou presidente do Conselho Municipal de Assistência Social. O governo federal cortou tudo nessa área. Desde janeiro, não repassa verba nenhuma para o Bolsa Família e anuncia que vai dar décimo terceiro. Mas de onde vai sair esse dinheiro? Dos onze meses que ficou sem repassar os recursos do programa para os municípios.

Viva! Serra Negra – O senhor acha que os investimentos sociais deixaram de ser prioridade?
Sapuppo - Este governo está querendo acabar com tudo em relação aos pobres. Você vê, a reforma trabalhista é para atingir o trabalhador, os mais pobres, não estou julgando o presidente, mas as políticas públicas adotadas. A política adotada pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, é a mesma adotada pelo Chile e veja como está aquele país. Conheço o Chile e a Argentina, tinham outra situação. No Brasil, o objetivo é que todos ganhem um salário mínimo. Eu ganho R$ 1.700,00 de aposentadoria do INSS, tenho outra aposentadoria, mas juntando não dá um terço do que eu ganhava. Dá um quarto.

Viva! Serra Nega – Se não houver entendimento de que é preciso investir no social e em especial no jovem, qual é a perspectiva para o futuro do país?
Sapuppo – Nós trabalhamos com o fortalecimento de vínculo, mas fica difícil sem a ajuda empresarial. Podemos dizer que 98% dos eventos realizados em Serra Negra são em prol do Hospital Santa Rosa de Lima ou do Lar dos Velhinhos. Os dois precisam, eu sou idoso, tem de cuidar dos idosos, mas não podem esquecer dos jovens que amanhã podem pegar você na rua... Falta uma visão de investimento no ser humano.

Viva! Serra Negra – O senhor acha que falta essa visão nas políticas públicas?
Sapuppo – Sim. O que fizeram com as universidades? Tiraram sociologia, filosofia, história e psicologia, matérias essenciais para o sujeito que quer ser um político, um presidente da República. As ciências humanas são tão importantes quanto as exatas. Sou italiano, a partir do ano que vem na Itália, tanto as escolas públicas quanto particulares, terão aula de ecologia para estudar o meio ambiente desde criança, porque o clima está mudando, a vida está mudando em consequência do meio ambiente e a Itália já colocou no currículo o meio ambiente. O presidente não está se importando com esse assunto. Estados Unidos e China, países que mais poluem, também não estão nem aí.

Viva! Serra Negra – O pacote recém-criado de estímulo de contratação de jovens entre 18 e 24 anos afeta a Guarda Mirim?
Sapuppo – De 18 para baixo não consegue mais emprego. Já estava difícil. O Estatuto da Criança e Adolescente (ECA) coloca a criança como um bibelô, não pode fazer nada, se contrata o jovem aprendiz para digitar, mas se precisa que ele passe uma vassoura no escritório, não pode. Tem empresário que iria abusar, mas o que falta no país é educação. Conheço alguns países e o Brasil é um dos mais mal-educados. A classe empresarial não pensa no trabalhador. Na Fiat, se o empregado ganha dois mil euros, o gerente ganha três, o diretor ganha quatro mil euros. No Brasil, a diferença salarial é muito maior. Não há distribuição de renda. Temos 15 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza e essa mentalidade vem desde a escravidão.

Viva! Serra Negra – Qual é o futuro do jovem serrano?
Sapuppo - Da faixa etária de 11 a 13 anos, trabalhamos única exclusivamente para tirá-los da rua e isso estamos conseguindo. Mantemos em média 42 crianças na parte da manhã. As atividades oferecidas envolvem orientação sobre sociedade, trabalho, a história de Serra Negra, atualidades, palestras, passeios em exposição, além disso fazem trabalhos artesanais, tapetes. Agora, os 170 que estão na fila de espera, como todos os adolescentes, dependem do governo e dos empresários.


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