//CIDADE// "Casos de crianças em situação de risco são comuns"

Promotor Leonardo Bortolaço: população deveria participar mais do Conselho Tutelar


Salete Silva

No dia 6 de outubro, um domingo, Serra Negra vai eleger os integrantes para os próximos quatro anos do Conselho Tutelar, órgão responsável por zelar pelo cumprimento dos direitos das crianças e adolescentes.

Embora a participação da população serrana tenha sido pequena nas últimas eleições, o promotor de Justiça Leonardo Carvalho Bortolaço resume em uma frase a relevância do órgão municipal que acolhe o menor em situação de risco:

- O Conselho Tutelar é os olhos do juiz e do promotor na proteção da criança e do adolescente.

Em entrevista ao Viva! Serra Negra, o promotor revelou que casos de menores em situação de risco, em especial em que há omissão de cuidados da família, são comuns no município, e que a crise econômica profunda e prolongada tem agravado esse problema.

O promotor elogiou o Estatuto da Criança e Adolescente (ECA), apesar das críticas feitas à legislação, em especial pelos segmentos da sociedade defensores da redução da maioridade penal.

O ECA, na avaliação do promotor, é uma ótima legislação que serviria de exemplo até para os países do Primeiro Mundo.

“O que precisamos é de instrumento para cumprir a lei”, ressalva Bortolaço. A rede de proteção ao adolescente, ele enfatiza, tem de estar funcionando.

Ele cita o caso da Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (Fundação Casa), responsável por executar as medidas socioeducativas aplicadas pelo Poder Judiciário aos adolescentes infratores.

A instituição, ele avalia, deveria receber investimentos para ser um local bem estruturado sem se assemelhar a um presídio.

“A cabeça das pessoas tem de mudar com relação a isso, com relação a alguns preconceitos. Isso tem de ser tirado da caixa, o que é difícil”, afirmou.

A seguir, a íntegra da primeira parte da entrevista concedida por Bortolaço ao Viva! Serra Negra.

Viva! Serra Negra – Como serão as eleições para o Conselho Tutelar?
Leonardo Bortolaço – Houve uma alteração na legislação recentemente. As eleições do Conselho Tutelar agora acontecem da mesma forma que eleições para prefeito, deputado e presidente da República. Também passam a ser de quatro em quatro anos e a serem realizadas na primeira semana de outubro, coincidindo sempre com um ano antes das eleições municipais. Essas são mudanças legislativas.

Viva! Serra Negra - Quando foi feita essa alteração?
Leonardo Bortolaço – Este ano é a segunda vez em que que o mandato das eleições vai valer por quatro anos. No primeiro momento foi de dois anos, prorrogado por mais dois. Agora, são quatro anos.

Viva! Serra Negra – Quantos conselheiros serão eleitos?
Leonardo Bortolaço – Agora serão eleitos cinco conselheiros e cinco suplentes.

Viva! Serra Negra – Quais são os requisitos exigidos para participar das eleições?
Leonardo Bortolaço O processo eleitoral é muito rígido. O candidato tem de ter bons antecedentes criminais. É realizada uma prova prática, por escrito, que versa principalmente sobre as normas da criança e do adolescente, o Estatuto da Criança e do Adolescente, o ECA. O candidato tem de primeiro ser aprovado nessa prova, que é uma exigência que não existe para as eleições gerais, nem para deputado federal, vereador nem para prefeito. Mas há para Conselho Tutelar. Essa prova é uma pré-seleção. Uma vez aprovado é que esses candidatos estão habilitados para concorrer ao cargo de Conselheiro.

Viva! Serra Negra – Qual é o número de candidatos?
Leonardo Bortolaço – Acho que temos 11 candidatos. Só um deve ficar de fora, porque os outros podem ser suplentes.

Viva! Serra Negra – É um número pequeno...
Leonardo Bortolaço – É que parte dos candidatos foi eliminada na parte escrita. Não é uma prova dificílima, mas tem de ter conhecimento. O Conselho do Adolescente e da Criança é que realiza as eleições. A prova versa especialmente sobre o Estatuto da Criança e Adolescente.

Viva! Serra Negra – Qual é o perfil dos candidatos?
Leonardo Bortolaço – Tem ex-policiais militares, professores e pessoas que trabalhavam na prefeitura. Em geral são pessoas de meia idade. Além disso, todos os atuais integrantes do Conselho Tutelar são candidatos também. São candidatos à reeleição. Essa também é uma alteração recente da legislação. Há cerca de três meses foi permitida a reeleição, uma única vez. Quando houve a mudança no período de eleições de dois para quatro anos, não foi permitida a reeleição. Mas agora foi aprovada. O Baby, por exemplo, nosso conselheiro mais antigo, vai disputar a reeleição.

Viva! Serra Negra – Qual é a jornada de trabalho e salário?
Leonardo Bortolaço - A jornada diária de trabalho é de oito horas mais os plantões nos finais de semana. Os salários não sei exatamente, porque além do fixo há ajuda de custo.

Viva! Serra Negra – Qual é a importância do Conselho Tutelar?
Leonardo Bortolaço – O Conselho Tutelar é muito importante para nós do Ministério Público, para o promotor e para o Juiz da Infância. O Conselho Tutelar é um longa manus [executor das ordens judiciais, ou seja, a mão estendida do juiz na rua]. É os olhos do juiz e do promotor na proteção da criança e do adolescente.

Viva! Serra Negra – Existe uma lei que determina o número de conselheiros de acordo com o número de habitantes do município?
Leonardo Bortolaço – Sim, é como vereador. Só em número de conselhos tutelares. Em Campinas, por exemplo, vai ter um número maior de conselhos. Serra Negra, como é uma cidade pequena, tem apenas um.


"A Fundação Casa deveria
ser um local bem estruturado, 
não semelhante a um presídio"

Viva! Serra Negra – Como é a infraestrutura do Conselho Tutelar?
Leonardo Bortolaço – É razoável. Anos atrás era ruim, mas agora está numa casa boa, reformada, tem viatura própria, enviada pelo governo federal, que é boa, só deles, e atende a demanda. A infraestrutura é modesta, mas atende a nossos interesses.

Viva! Serra Negra – Qual é a sua avaliação sobre a participação dos serranos nas eleições para o Conselho?
Leonardo Bortolaço – Nas eleições passadas, achei que não foi muita gente. Acho que deveriam participar mais. Ficou abaixo do que esperava. E em relação aos candidatos também há pouco interesse. São sempre os mesmos. Na atual eleição, todos os atuais conselheiros são candidatos à reeleição e os demais candidatos também já participaram anteriormente. Acredito que acham que é difícil, o salário é pequeno. Mas a função não era para ser emprego. Que o trabalho é duro, é mesmo. De todos os candidatos, só dois eu não conhecia.

Viva! Serra Negra – Quais são os problemas mais comuns relacionados à criança e ao adolescente em Serra Negra?
Leonardo Bortolaço – Os problemas mais comuns em que o Conselho Tutelar vai atuar são quando a criança e o adolescente estão em situação de risco. Quando isso ocorre? Quando há uma omissão do Estado, quando há omissão da família, que deixa de zelar pelo menor. Ele está em situação de risco também quando pratica um ato infracional, ou seja, ele está em situação de risco quando ele pratica sua própria conduta. Um adolescente que pela nossa legislação comete um roubo está em situação de risco. Nessas hipóteses de situação de risco, tem a atuação do Conselho Tutelar, que quando atua pode aplicar algumas medidas de proteção ao adolescente na tentativa de retirá-lo dessa situação de risco.

Viva! Serra Negra – Quais seriam essas medidas?
Leonardo Bortolaço – O Conselho pode fazer muitas coisas. Pode indicar um tratamento para o adolescente, nas questões muito graves pode utilizar um artigo do estatuto e colocar essa criança, até de forma provisória, numa família substituta. Tira a guarda e põe provisoriamente numa família substituta. Ele tem de comunicar, imediatamente, o promotor e o juiz, para que as medidas legais sejam tomadas.

Viva! Serra Negra – São comuns esses casos em Serra Negra?
Leonardo Bortolaço – São comuns. É comum constatar que uma criança está em situação de risco. Geralmente, nessas condições, praticada pela própria família. Família que é geralmente desestruturada, que não está cuidando bem da criança, que às vezes está até em situação de rua. Há intervenção do Conselho Tutelar, que pega essa criança e a coloca numa situação de família substituta e depois vem para cá para a gente instaurar um procedimento no juízo.

Viva! Serra Negra - Como é esse procedimento?
Leonardo Bortolaço – Nesse procedimento, verificamos a situação dessa criança e da família. O objetivo é reestruturar essa família para que a criança volte ao seu lar natural.

Viva! Serra Negra – E é possível reestruturar essa família?
Leonardo Bortolaço – Já aconteceu várias vezes e já aconteceu também de não conseguir.

Viva! Serra Negra – Nesse processo todo, como atua o Conselho Tutelar? Ele tem poder de decisão?
Leonardo Bortolaço – O Conselho Tutelar tem a natureza de um órgão administrativo, que auxilia o juiz da Infância. Há algumas medidas de proteção, que estão no Artigo 101 do ECA, que o Conselho Tutelar pode sim fazer. Tem poder de decisão, mas nos casos mais graves, como retirar a criança e colocar numa família substituta, pode fazer, de forma cautelar. Mas imediatamente tem de comunicar o juízo.

Viva! Serra Negra – Cabe o mesmo para as questões de evasão escolar?
Leonardo Bortolaço – Nas questões de evasão escolar também. O Conselho Tutelar é que tem essa atribuição. Sempre que uma criança está evadida da escola, a escola tem de comunicar o Conselho Tutelar, que por sua vez tem de chamar e conversar com os pais.

Viva! Serra Negra – O Conselho age por meio de denúncias?
Leonardo Bortolaço – Por denúncias e por suas atividades fiscalizadoras. No geral, é denúncia. É a própria rede de proteção do município, o Creas [Centro de Referência Especializado de Assistência Social], o Cras [Centro de Referência de Assistência Social] e o Caps [Centro de Atenção Psicossocial]. O assistente social do Creas, por exemplo, vai até uma família de baixa renda e presta assistência. Às vezes há uma criança nessa família que está em situação de risco e a própria rede de proteção comunica o Conselho Tutelar.

Viva! Serra Negra – Em geral são famílias de baixa renda?
Leonardo Bortolaço – O grande problema é nas classes mais baixas. Mas vamos dizer que é 90%, porque às vezes há famílias com poder aquisitivo maior que também praticam maus tratos contra as crianças.

Viva! Serra Negra – Qual é o impacto da crise econômica na situação de risco de crianças e adolescentes? Ela agrava a situação?
Leonardo Bortolaço – Agrava. A crise econômica agrava tudo. Agrava a situação de risco das crianças e o poder aquisitivo, que já era baixo, fica ainda menor. Agrava até para a rede de proteção do município, criando mais problemas com o ingresso nessa rede de pessoas, por exemplo, que pagavam médico particular e não pagam mais, que passaram a utilizar a rede pública, o Caps, psicólogos. Além disso, crianças que estudavam em escolas particulares vão para a rede pública, o que pode ensejar evasão escolar e que aí exige atuação do Conselho Tutelar.

Viva! Serra Negra – Qual é procedimento em cidades como Serra Negra em que não há abrigos?
Leonardo Bortolaço – Não há dificuldade alguma. Temos poucas crianças abrigadas. Só temos duas crianças abrigadas hoje. Segundo a legislação, mudança recente, o abrigo passou a ser uma situação excepcional. Algumas cidades têm família substituta, pessoas que se cadastram para receber essas crianças. O Conselho Tutelar percebe uma situação de risco junto com os pais e a criança tem de ser retirada daquele lar. A primeira coisa a ser feita é procurar uma família substituta. A primeira é a família extensa [formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade]. Pode ser tio, tia, avô, primo, prima, qualquer um da família que tenha condições. Essa é a regra. Se ficar com o avô, por exemplo, é família substituta. Se não tiver ninguém mesmo, aí é que ela vai para abrigo.

Viva! Serra Negra – E as crianças de Serra Negra que são abrigadas vão para onde?
Leonardo Bortolaço – Vão para o abrigo de Jaguariúna, que é um abrigo excelente.

Viva! Serra Negra – Há críticas de parte da sociedade em relação ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em especial quando se trata de antecipação da maioridade penal. Qual é a sua avaliação sobre essa polêmica e o ECA?
Leonardo Bortolaço – O ECA é uma legislação excelente. É uma ótima legislação, que serviria de exemplo até para os países de Primeiro Mundo. O que precisamos é de instrumento para cumprir a lei. Não basta ter a lei e não ter, por exemplo, uma rede de proteção boa. Não é uma crítica à rede de proteção do nosso município, porque ela funciona de forma razoável. É uma rede de proteção que precisa ter a sua estrutura. O Conselho Tutelar precisa ter sua estrutura também. A Fundação Casa precisa ser estruturada, precisa de investimento. A maior crítica que se faz à questão da maioridade  é com relação à pena. Não é pena, é medida socioeducativa. Mas a intenção da lei é quase que a mesma para os maiores de idade. A pena tem um caráter retributivo e preventivo. Ela também visa reintegrar o autor do crime na sociedade. Isso pode parecer um sonho. É um sonho, mas é o que busca a lei. Em relação ao ECA, deveria ser mais fácil, porque estamos tratando de pessoas cuja personalidade ainda está em formação. Essas pessoas, cuja personalidade está em formação e que são crianças e adolescentes, são mais fáceis de reintroduzir na sociedade. Por isso tem a medida socioeducativa. A Fundação Casa deveria ser um local bem estruturado, que não deveria ser semelhante a um presídio. Deveria ser algo confortável para o adolescente, com escola, escola de qualidade, mas como a gente pode exigir escola de qualidade lá dentro? A Lei, o ECA, é ótima assim como seus objetivos, mas tem de investir muito. E é cultural. A cabeça das pessoas tem de mudar com relação a isso, com relação a alguns preconceitos. Isso tem de ser tirado da caixa, o que é difícil.

Viva! Serra Negra – Outra polêmica comum é sobre o papel do Estado e da família na responsabilidade em relação à criança e que tem como um dos pontos de discussão a Lei Menino Bernardo, que coíbe o uso de castigos físicos ou tratamentos cruéis ou degradantes na educação de crianças e adolescentes. Qual é a sua avaliação sobre isso?
Leonardo Bortolaço – A lei proíbe que se espanque a criança, que não pode ser maltratada. A lei faz uma crítica, procura evitar esse tipo de excesso, excesso do jus corrigendi [direito de aplicar corretivo]. De fato, isso aí acho que é intervenção do Estado, que o Estado está intervindo na educação de seu filho. O nosso Estado é intervencionista. Ele intervém na economia, no comércio, nas relações interpessoais, na criação do nosso filho. É o que a gente teve até agora. O governo atual está querendo ser mais liberal. Essa Lei, a do ECA e todas as outras refletem esse Estado intervencionista.

Viva! Serra Negra – Serra Negra registra um número alto de casos de violência e abuso sexual contra crianças e adolescente. São mais de dez no ano. Tem alguma explicação para isso?
Leonardo Bortolaço – Notei que houve um aumento. Mas não posso afirmar por quê. Não sei por que isso aconteceu, mas houve e se pensar que é uma cidade pequena e pacata, a incidência é alta.

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