//CARLOS MOTTA// A Câmara Municipal, o Estado laico e a teocracia



A última sessão deste ano e desta legislatura da Câmara Municipal de Serra Negra, segunda-feira, 9 de dezembro de 2024, foi aberta pelo presidente da Mesa Diretora, Waguinho do Hospital, como todas as outras: ele verificou o quórum e iniciou os trabalhos invocando "as bençãos e a proteção de Deus", convidando, a seguir, os seus colegas a rezar o Pai Nosso. 

Assim fazendo, os vereadores ignoraram a representação da Promotoria de Justiça de Serra Negra à Procuradoria-Geral de Justiça do Estado solicitando a abertura de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade do Artigo 103, § 2º do Regimento Interno da Câmara Municipal de Serra Negra. Ele determina que as sessões do Legislativo serrano comecem com o pedido feito por Waguinho do Hospital à divindade.  

Na sua representação, o promotor de Justiça Leonardo Carvalho Bortolaço salienta que "a egrégia Procuradoria-Geral de Justiça" possui entendimento no sentido de que as disposições do Artigo 103, § 2º do Regimento Interno da Câmara Municipal de Serra Negra são inconstitucionais "por afetaram a previsão de laicidade do Estado e de pluralidade de crenças".  

Afirma ainda que o artigo "contraria frontalmente a Constituição do Estado de São Paulo, à qual está subordinada a produção normativa municipal ante a previsão dos artigos 1º, 18, 29 e 31 da Constituição Federal". 

Desrespeitar dessa forma a laicidade do Estado brasileiro não é privilégio da Câmara Municipal de Serra Negra. A Justiça já proibiu vários Legislativos de outras cidades de levar a religião aos seus locais de trabalho.  

Os vereadores serranos, entretanto, parecem viver um mundo à parte, que possui leis próprias. A atual legislatura, que se encerra em 31 de dezembro, aprovou três projetos de lei que posteriormente foram declarados inconstitucionais: dois deles sobre a ampliação do perímetro urbano da cidade e o terceiro que dava nome de rua a pessoa viva, no caso o ex-prefeito Sidney Ferraresso. 

Talvez eles, num surto coletivo de amnésia, tenham se esquecido do seu compromisso de posse, prestado em 1º de janeiro de 2021: "Prometo desempenhar fielmente o meu mandato, promovendo o bem geral do município, dentro das normas constitucionais."

O atentado à laicidade do Estado brasileiro, cometido semanalmente em cada sessão legislativa, deve ainda ser confirmado pela Justiça. Se for, como tudo indica, cabe perguntar se a nossa Casa de Leis não está mais para uma Casa Fora da Lei. 

Os nossos edis também deveriam ter seus nomes publicados no famoso livro de recordes, o Guinnes: dificilmente se achará, em todo o mundo, um Legislativo que aprove, por unanimidade, todas as matérias recebidas do Executivo. A Câmara Municipal de Serra Negra conseguiu tal façanha. Talvez por isso, há quem diga que Serra Negra não tem vereadores, mas aprovadores. 

Não contentes em aprovar projetos inconstitucionais, eles ainda têm o péssimo hábito de achar que o Brasil é um país onde cada um pode fazer o que quiser, onde não existe uma Carta Magna nem leis que regulam as relações sociais. 

Os trechos abaixo foram retirados do que disseram os vereadores Roberto Sebastião de Almeida (não reeleito), Ney (reeleito), Renato Giachetto (reeleito) e Viviani Carraro (não reeleita), na sessão do dia 25 de novembro, a 37ª da atual Legislatura. Seus comentários foram a respeito da representação da Promotoria de Justiça de Serra Negra, pedindo a abertura de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade do artigo do Regimento Interno que invoca "as bençãos e a proteção de Deus" para a abertura dos trabalhos. 

"... o que adianta a gente ter um regimento interno que diz o que a gente podemos (sic) fazer e vem alguém criticar o que nós não podemos fazer? Todas as outras casas legislativas têm os seus regimentos internos, né, e cada qual coloca aquilo que quer, o que faz bem para eles. E se a nossa Câmara Municipal, quando foi feito o regimento interno entendeu que por bem que nós deveríamos rezar o Pai Nosso, que é uma oração que uma grande totalidade das religiões faz, ou a grande maioria, pelo menos, o que as pessoas têm de querer se intrometer nisso?" (Roberto Sebastião de Almeida) 

"Não vou estar aqui no ano que vem para defender aquilo que eu creio, então vou aproveitar esse momento para dizer: o Estado pode ser laico, mas as pessoas têm religião e nós fomos eleitos para representar a população da nossa cidade. Se a população da nossa cidade colocar que a sua maioria não quer que nós rezemos o Pai Nosso, aí sim." (Roberto Sebastião de Almeida)  

"É uma pena, é uma pena que as pessoas achem que a gente deve tirar a religião, Deus, de dentro do Estado, né? (...) Eu não respeito, não, quem acha isso, sabe por quê? Porque se eu admitisse isso eu estaria indo contra as minhas convicções de que existe um ser maior que criou a todos nós e que rege as nossas vontades. Não vou discutir com ninguém, mas eu não respeito as pessoas que pensam assim nesse sentido em relação a isso (...) A Justiça deve respeitar a vontade do povo e o povo de Serra Negra não se manifestou contrário a isso. Então, que o Tribunal de Justiça, quando vier a julgar isso, né, apesar de o Estado ser laico, mas toda a população tem Deus, tem uma religião." (Roberto Sebastião de Almeida) 

"... o pessoal da Igreja Evangélica, as crianças que estavam aqui, quando nos presentearam com essa Bíblia aqui, cada vereador ganhou uma Bíblia desta criança, e o que um dos colaboradores do Daniel disse é 'quando vocês precisarem tomar alguma decisão, alguma coisa, vocês se aconselhem com a Bíblia.' É... Esse é o meu conselho a partir da oração que nós fizemos juntos." (Ney) 

"Concordo que o Brasil é um país laico, isso eu não discordo, mas não vejo nada, nenhum mecanismo que afete a alma do cidadão, que afete a população, que afete a estrutura da cidade ao chegarmos aqui e nos posicionarmos e fazermos uma oração inicial. Daonde (sic) nós temos aí décadas e mais décadas, quiçás (sic) séculos, tendo esse procedimento e até agora nada de mal foi feito a quem quer que fosse em razão de se fazer a oração inicial do Pai Nosso." (Renato Giachetto) 

"Como todo mundo recebeu uma Bíblia, se vocês puderem ler Marcos, capítulo 13, se vocês quiserem marcar, chegarem na casa de vocês e lerem, é, realmente, são os dias de hoje. Eu acredito, como disse um dos vereadores do crucifixo, talvez seja a próxima etapa e não vai parar aí, nós vamos ter muitas outras coisas que vão acontecer. Então, se vocês puderem ler Marcos 13 vocês vão poder entender o que eu estou querendo dizer. Também não quero entrar em mérito de religião, porque eu acho que religião não leva pra nada, somente Jesus e Deus é a razão de tudo, né?" (Viviani Carraro)

A arenga em defesa de se misturar religião com política, de achar que não há nada de mais em ir contra a Constituição, durou 27 minutos, quase um quarto do tempo total da sessão.  

Nenhum vereador saiu em defesa da Carta Magna, que em seu Artigo 19, estabelece que "é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público."

Daí se depreende que todos estiveram de acordo com o que foi dito pelos quatro que se manifestaram a favor de misturar religião com política. 

O Irã, o Afeganistão, a Mauritânia, a Arábia Saudita e o Paquistão são exemplos de países teocráticos. 

O Brasil, pelo menos por enquanto, é uma república democrática, apesar de alguns vereadores serranos acharem que não.

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Algumas considerações finais:

Nas suas manifestações na sessão de 25 de novembro, os vereadores Roberto Sebastião de Almeida, Ney e Renato Giachetto estiveram mais preocupados em atacar quem avisou o Ministério Público sobre o flagrante desrespeito à laicidade do Estado promovido pela Câmara Municipal de Serra Negra do que com as considerações da Promotoria Pública, que não só constatou a ilegalidade como solicitou a abertura de um processo judicial para saná-la.

Para quem não sabe, quem alertou o Ministério Público sobre a inconstitucionalidade do Artigo 103, § 2º do Regimento Interno da Câmara Municipal de Serra Negra foi o autor destas mal traçadas linhas.

E antes que, a exemplo dos vereadores Roberto, Ney e Renato, me acusem de "vir de longe dizer o que nós temos de fazer" (Roberto), ou de "aposentado" que sai de casa para "inundar" o Ministério Público (Ney), ou de "intolerância religiosa" (Renato), esclareço que não tenho nada contra quem é religioso ou quem reza o Pai Nosso ou outra oração qualquer de qualquer religião - desde que o faça em local apropriado, uma igreja, um templo, sua casa... 

Só não posso admitir, como cidadão brasileiro, que a Câmara Municipal de Serra Negra estabeleça que seu Regimento Interno vale mais que a Constituição de meu país.

Da mesma forma que não estou acima da lei, nenhum outro brasileiro está.  

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Carlos Motta é jornalista profissional diplomado (ex-Estadão, Jornal da Tarde e Valor Econômico) e editor do Viva! Serra Negra



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