//SALETE SILVA// A fome nas ruas, a caridade do povo e o desprezo dos poderosos



Serra Negra é uma cidade pequena, com 29 mil habitantes. A caridade ainda pode amenizar as mazelas das famílias em insegurança alimentar que estão entre os mais de 100 milhões de brasileiros que não sabem se terão o que comer nos próximos dias e semanas. O emprego é informal e a renda curta e imprevisível. 

Tenho presenciado cenas e vivido situações antes inimagináveis nos 20 anos em que vivo por aqui. Ao abrir a porta do meu carro, um dia desses, fui abordada por uma mulher na Avenida Laudo Natel. Ela pediu dinheiro para comprar lanches a três crianças de uma família sem recursos que essa senhora vinha ajudando com alimentação. Explicou que queria fazer um agrado aos pequenos neste momento difícil, oferecendo às crianças um lanche diferente. 

Reagi com desconfiança e disse que não teria como oferecer o dinheiro para comprar os três lanches. Contribuí com o que podia. Ela pegou com entusiasmo e disse que apesar de não ser o suficiente para comprar os três lanches da lanchonete, como pretendia, daria para fazer sanduíches com pão, frios e refrigerantes comprados na padaria. Meu marido achou que havia caído em um  golpe. Concordei com ele. Entramos no carro e saímos. Rodamos a cidade e qual não foi nossa surpresa ao ver a mulher sair de uma padaria com uma sacola, provavelmente, com os pães e o frio e o refrigerante na mão.

Nunca questiono o que farão com o dinheiro que dou nas ruas. Não me importa nem se será usado para a pinga. Afinal, se a sociedade já de alguma forma lhe tirou tudo ao não lhe oferecer oportunidades, por que vou lhe tirar o direito de tomar a pinga. Não sei se havia de fato crianças na história da mulher que me pediu o dinheiro. Ela podia estar constrangida de dizer que os lanches eram para matar a própria fome ou a de sua família.  O fato é que comprou comida. 

Domingo, Dia das Mães, presencie uma das cenas mais tristes. Na travessa ao lado da Praça do Fórum, que dá acesso à Rua 7 de Setembro, uma mulher com aparência de mais de 70 anos, pedia esmolas no trânsito. Pediu dinheiro para comprar óleo. Peguei a carteira e não tinha no momento R$ 11, o mínimo para um litro de óleo. Dei o que tinha. Ela ficou meio chateada, sentou na calçada, tirou da bolsa um embrulho e começou a comer. Acho que era um pedaço de bolo. 

Fiquei pensando sobre a vida daquela mulher, que no Dia das Mães saiu às ruas para pedir esmolas Teria filhos? Teria família? Certamente, estava com fome e não teria uma mesa farta para comemorar a data que para o comércio é uma das mais importantes, depois do Natal. Confesso que o fato ofuscou minhas comemorações. Pensei naquela senhorinha quase todo o dia.  

Provavelmente todo mundo tem convivido com cenas como essas no pior momento da história do país desde a redemocratização, que vão ficar na memória dos brasileiros e de moradores de  cidades pequenas, como Serra Negra, em que a fome pontual das famílias vem sendo amenizada com a ajuda da população. Na terça-feira, 10 de maio, recebi pelo WhatsApp um pedido de ajuda para uma família também em insegurança alimentar. 

Até quando? Enquanto a população padece, o presidente da República atribui a culpa do desastre econômico à guerra na Ucrânia ou ao "fique em casa". O ministro da Economia, Paulo Guedes, que provavelmente acha que está tudo sob controle, dorme em berço esplêndido sem ser importunado nem pela imprensa nem pelos políticos de municípios e Estados, que deveriam cobrar da autoridade econômica medidas para erradicar a miséria com dignidade sem ter de continuar apelando à caridade da população para dar de comer e vestir aos munícipes em situação de vulnerabilidade.


  

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