//OPINIÃO// "Marighella" e a guerrilha cultural

 


Salete Silva


A exibição do filme “Marighella” em Serra Negra, no sábado, 4 de novembro, uma iniciativa do Kanemo Cine Clube em parceria com o PSOL local, foi alvo de muita polêmica nas redes sociais do município e da região.

A oportunidade de assistir ao primeiro longa de Wagner Moura foi comemorada em especial por moradores de Serra Negra, que, sem uma sala de cinema na cidade, não teriam como ver o filme na telona.

Mas a exibição recebeu também uma enxurrada de críticas. A principal delas é a de que o filme exalta um criminoso que ensinava jovens a assassinar policiais. 

"Marighella ensina como destruir as Forças Armadas, matar policial e assaltar bancos", dizia um comentário. Divulgar ou assistir ao filme, diziam os críticos, seria disseminar ideologias.

A polêmica parece ter contribuído para o sucesso de público. Cerca de 200 pessoas lotaram a sala do Centro de Convenções. Quem assistiu pode constatar que nem de longe Marighella é reverenciado ou canonizado.

Não há defesa da luta armada como estratégia para combater um governo autoritário, torturador, assassino de adversários políticos e censurador.  Ao contrário, o filme revela como esse grupo foi dizimado e que ele era a minoria entre os opositores à ditadura militar.  

O diretor apresenta um recorte do personagem Carlos Marighella. A organização da luta armada é só uma das facetas explorada por Moura, como mostra o livro “Marighella, o guerrilheiro que incendiou o mundo”, um trabalho minucioso de reportagem do jornalista Mário Magalhães, no qual o filme foi inspirado.

Filho de pai italiano e mãe negra hauçá, o comunista que chegou a ser considerado o “inimigo” número um do governo militar, foi poeta, professor, deputado pelo Partido Comunista do Brasil e escritor de uma série de livros.

O enfoque na tentativa da tomada de poder por meio da guerrilha enfatiza  a situação social insustentável em que se encontrava o país, acobertada pela censura à informação e à imprensa que em um determinado momento tornou-se conivente das atrocidades cometidas pelo governo.

Marighella, assim como os jovens estudantes que liderava, acreditava que a luta armada era a única saída para trazer à tona as barbaridades e crueldades cometidas pelo governo, além de combater o sistema marcado até hoje pelas injustiças e desigualdades sociais.

Barbaridades cometidas pelos jovens guerrilheiros não foram poupadas das cenas, como um assassinato violento de um pai na presença do filho pequeno.

Wagner Moura afirmou em entrevista ao programa Roda Viva que, do ponto de vista artístico, não poderia poupar Marighella. Se o fez por uma questão artística ou por outras razões, o fato é que usou o personagem para relatar como a ditadura torturou, censurou e matou intelectuais, professores, estudantes, jornalistas e os cidadãos que se opunham a ela.

Revela como as autoridades policiais plantaram uma arma nas mãos do cadáver de Marighella para justificar seu fuzilamento a tiros na Alameda Casa Branca, na capital paulista, fato só revelado décadas depois com o fim do governo militar.

A luta de Marighella continua atual e é a mesma do cidadão brasileiro que deseja um país mais justo, menos desigual, mais inclusivo, mas a guerrilha não será com armas, mas com articulação política, livros, informação, arte e cultura.

O filme de Moura é uma arma nas trincheiras do Brasil atual, assim como as demais obras artísticas, a cultura e a manifestação pública contra as injustiças sociais. Assistir a Marighella em Serra Negra foi mais do que respirar cultura, foi um ato de cidadania.

A iniciativa contribuiu para resgatar uma sala há anos desativada e que servia de residência para morcegos que deram voos rasantes sobre a plateia durante a sessão. Serra Negra está desempoeirando e criando espaços públicos para que, independentemente da ideologia, a população possa exercer sua liberdade de expressão.

Bem vindos à "guerrilha" cultural. Há um longo percurso pela frente.



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