/CRÔNICA// A morte é apenas um detalhe


Carlos Motta

Lá pelos idos dos anos 80 do século passado, eu era feliz trabalhando num diário criado por um grupo de jornalistas, chamado "Jundiaí Hoje". Durou pouco, três anos apenas, mas fez muita coisa boa pela cidade, revelou talentos e deixou saudade em muita gente.

A redação do JH, além do pessoal de Jundiaí, contava com o reforço de alguns jornalistas da pesada, que moravam na cidade e trabalhavam no saudoso Jornal da Tarde, como Sandro Vaia, que chegou a diretor de Redação do Estadão, Sérgio Rondino, editor do JT e apresentador de telejornais da Band, e Ademir Fernandes, que passou pelo JT e pela Agência Estado. Dos três, apenas Rondino está vivo.

Ademir era um jornalista extraordinário, com uma capacidade de trabalho que nunca vi em outra pessoa. Além disso tinha um fino senso de humor, seus trocadilhos saíam com a naturalidade de uma respiração. Ele cuidava da editoria de esportes do Jundiaí Hoje, passava na redação à tarde, antes de ir a São Paulo, já com as matérias prontas. 

E foi na condição de jornalista esportivo que escreveu um dos mais brilhantes pequenos textos que já li - na verdade, uma piada inserida numa notícia sem relevância para o público, mas muito importante para levantar o astral de uma tropa combalida - nós, os seus colegas de jornal. 

De quando em quando formávamos um time de futebol, repleto de rematados pernas de pau. E vez ou outra desafiávamos os companheiros do Jornal da Cidade, diário jundiaiense fundado, entre outros, por Sandro Vaia, e no qual eu e Ademir havíamos trabalhado.  

Numa dessas pelejas, levamos uma goleada daquelas. 

Ademir foi o único que não se deu por vencido, embora não tenha jogado - seu físico avantajado estava mais para se curvar ante o teclado da máquina de escrever - sim, naquele tempo era nela que batucávamos nossos textos - do que para correr atrás de uma bola ou de marmanjões. 

A forma de se desforrar do temível adversário e ao mesmo tempo lavar a nossa honra foi uma notícia sui generis sobre o jogo, que ele insistiu em publicar, apesar dos protestos de alguns colegas mais sisudos. 

O texto avisava o leitor da rivalidade entre as duas redações, da importância da peleja entre elas, e depois passava a descrever os lances principais dos atletas do Jundiaí Hoje, seus passes milimétricos, chutes portentosos, defesas milagrosas do goleiro - e assim por vários parágrafos. 

Só na última linha ele se dignava a informar: "O jogo terminou 4 a 1 para o Jornal da Cidade."

Quem entra no site do Ministério da Saúde para saber a quantas anda esta terrível pandemia que ceifa vidas e sonhos de dezenas de milhares de brasileiros vai se sentir como o leitor do Jundiaí Hoje quando leu a notícia do jogo contra o Jornal da Cidade. 

O site dá destaque para os pacientes que se curaram - a derrota, ou seja, a enorme quantidade de mortos, é irrelevante.

Da mesma forma, em todo o Brasil, a terrível pandemia é tratada com descaso pelas autoridades que deveriam cuidar do bem-estar do povo. Para elas, a economia vem antes da vida. Ficar isolado é coisa de covardes. A morte é inevitável. A morte virou coisa banal. 

Bem, o Ademir fez, 40 anos atrás, uma piada inocente, que não prejudicou nem ofendeu ninguém - e que certamente fez muita gente rir. 

Nossas autoridades, ao contrário, hoje riem de nossas caras, sem nenhum pudor, sem constrangimento, cínicos que são.

O ex-técnico da seleção brasileira Carlos Alberto Parreira disse certa vez uma frase que acabou por definir o que pensava do futebol: "O gol é apenas um detalhe."

Fez escola. As nossas autoridades acham igualmente que a morte também é apenas um detalhe.

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