//ENTREVISTA// Dalmo Dallari revisita Serra Negra

Dalmo Dallari: "Tenho da cidade boas lembranças e nada negativo"


Carlos Motta

O professor emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), Dalmo de Abreu Dallari, se mantém, aos 87 anos de idade, como um dos intelectuais mais respeitados do país e uma de suas mentes jurídicas mais lúcidas. 

Nascido em Serra Negra, estudou e passou a infância e parte da adolescência na cidade. Mudou-se para a capital paulista e lá se formou em direito pela USP, em 1957. Foi aprovado, em 1963, no concurso para livre-docente da disciplina Teoria Geral do Estado, na própria USP, e no ano seguinte passou a integrar o corpo docente da universidade. 

Nunca abandonou a vida acadêmica, embora a tenha dividido com inúmeras outras atividades: foi membro do Conselho Universitário e da Comissão de Legislação e Recursos da USP; da Comissão de Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo, da qual foi presidente; da Associação Brasileira de Juristas Democratas; e do Instituto dos Advogados de São Paulo, do qual foi vice-presidente. Também presidiu a Fundação Escola de Sociologia e Política e foi secretário dos Negócios Jurídicos da Prefeitura do município de São Paulo, na gestão da prefeita Luiza Erundina.

É um senhor currículo, privilégio de pouquíssimos brasileiros, e que teve seu início nas lições de vida que ele recebeu, ainda criança, em Serra Negra.

"Serra Negra é fundamental em minha história de vida", afirma o professor Dallari na entrevista exclusiva que deu ao Viva! Serra Negra. "Passei na cidade a minha infância e fui testemunha e participante de uma convivência fraterna e solidária de pessoas e famílias de diferentes origens e formações." 

Esse período que viveu em Serra Negra, diz o professor, autor de inúmeras obras sobre direito, cidadania e política, "certamente influiu" para que incorporasse o humanismo aos seus valores e costumes, "vendo em cada ser humano um igual, merecedor de respeito e, se necessário, de meu apoio".

Embora diga que vê "com muita consternação a atual situação do Brasil", segundo ele "governado, na realidade, por adoradores do dinheiro", o professor Dallari é um otimista, pois acredita que "a Constituição de 88, reconhecida e louvada em muitos países como uma das mais democráticas do mundo", conduzirá o país ao estabelecimento "de um verdadeiro Estado democrático de direito". 

A seguir, a íntegra da entrevista do professor Dalmo Dallari ao Viva! Serra Negra:

Viva! Serra Negra - O que representou Serra Negra para a sua história de vida?

Dalmo Dallari - Serra Negra é fundamental em minha história de vida. Lá passei minha infância e fui testemunha e participante de uma convivência fraterna e solidária de pessoas e famílias de diferentes origens e formações. Lá havia remanescentes de antigas famílias brasileiras e havia também muitas famílias de imigrantes italianos. Alguns brasileiros eram herdeiros de pequenas propriedades rurais e havia também famílias italianas que tinham adquirido pequenas propriedades. E todas conviviam pacificamente, em completa harmonia, dando apoio recíproco.


"As famílias pobres recebiam
o apoio e ajuda dos demais 
habitantes, sendo tratados 
com respeito e amizade"


Exemplo disso são meus pais, ele, Bruno Dallari, filho de imigrante italiano que se tinha estabelecido na cidade como sapateiro. E casou-se com minha mãe, Aurea Leme Abreu, de tradicionais famílias brasileiras. Ao lado disso, havia também na cidade algumas famílias ostensivamente pobres, que recebiam apoio e ajuda dos demais habitantes, sendo tratados com respeito e amizade, sem nenhuma prática discriminatória. Além disso, havia um pequeno número de famílias negras, que eram pobres, mas também conviviam harmoniosamente com os demais habitantes, não sofrendo qualquer forma de humilhação discriminação e recebendo apoio material para o atendimento de suas necessidades essenciais. Essa foi a base de minha formação, que, certamente, influiu para que eu incorporasse o humanismo aos meus valores e costumes, vendo em cada ser humano um igual, merecedor de respeito e, se necessário, de meu apoio.

Viva! Serra Negra - Que lembranças o sr. tem da cidade?
Dalmo Dallari - Tenho da cidade muito boas lembranças e nada negativo. Tenho lembrança de minha iniciação escolar, no Jardim de Infância do Externato Sagrada Família, mantido por freiras. E depois disso tenho lembrança do Grupo Escolar de Serra Negra, onde  a convivência com colegas era sempre fraterna e alegre e onde as professoras tratavam os alunos como se fossem seus filhos. Um dado curioso é que só havia professoras, mas eu tive a oportunidade de ter um professor no terceiro ano do grupo escolar, porque uma professora aposentou-se e ele, que era serrano, mas vivia e trabalhava em Campinas, foi chamado como substituto temporário para que a turma não ficasse sem aulas. Um dado curioso é que não havia ginásio na cidade. 


"Disse: 'Professora, Getúlio 
não é presidente, é ditador.'
E fiquei de pé no canto da
sala até o fim da aula"


O curso primário durava quatro anos e as freiras criaram um quinto ano, do qual eu fui aluno e onde tive minha primeira punição política. Serra Negra tinha participado ativamente da Revolução Constitucionalista, de 1932, na qual tinha morrido um de meus tios, Mario Dallari, que hoje dá nome a uma das ruas centrais da cidade. Em 1934 foi instalada uma Constituinte, que fez uma Constituição, revogada por Getúlio Vargas em 1937, instalando-se uma ditadura, chefiada por Getúlio, que se autodenominava presidente. Em minha família havia sempre muito crítica ao ditador Getúlio Vargas. Um dia, na sala de aula do quinto ano, a professora referiu-se ao "nosso presidente Getúlio Vargas" e eu, atrevidamente, interrompi a fala da mestra e disse isto, que eu havia ouvido muitas vezes de meu pai: "Professora, Getúlio Vargas não é presidente, é ditador". A professora ficou indignada e disse isto: "Você é um atrevido e para aprender a respeitar nosso presidente vai ficar de pé no canto da sala até o fim da aula." Foi essa a minha primeira punição política, mas foi também um passo em minha formação, pois não me amedrontei e continuei dizendo, onde era possível, que Getúlio Vargas era um ditador. Aí estão algumas passagens de minha formação que me levam a ter a melhor lembrança de Serra Negra e a continuar praticando e pregando o humanismo que aprendi em Serra Negra.

Viva! Serra Negra - O sr. ainda frequenta ou tem notícias da cidade?

Dalmo Dallari - Durante muitos anos continuei indo a Serra Negra com certa frequência, para rever parentes e amigos e matar saudades de minha infância serrana. Mas com o passar do tempo restaram muito poucos parentes e amigos e, além disso, com o desenvolvimento de minha carreira de professor de direito e teoria do Estado, passei a viajar muito, inclusive para o exterior, tornando-me, inclusive, professor da Universidade de Paris. Com isso tornaram-se muito raras minhas idas a Serra Negra. As notícias da cidade eu recebia antes pelo jornal "O Serrano", do qual eu era assinante, mas depois ele deixou de existir e hoje tenho poucas notícias de minha querida Serra Negra. Essa é uma das razões pelas quais fiquei feliz com a notícia da criação do "Viva! Serra Negra" .


"Gostaria que os serranos dessem
continuidade às tradições de
respeito por todos os seres
humanos e apoio aos necessitados"


Viva! Serra Negra - Serra Negra é uma cidade conservadora, haja visto que na eleição passada deu 81% de seus votos para o candidato Jair Bolsonaro. Na sua opinião, o que é possível fazer para que comunidades desse tipo passem a ter uma visão de mundo mais contemporânea, mais aberta e democrática?
Dalmo Dallari -  Serra Negra sempre foi uma cidade conservadora, o que tem coerência com sua origem e o tipo de sua população até recentemente. E com a mudança de parte da população isso se manteve. A meu ver, para a criação de uma mentalidade mais aberta e progressista é necessário um trabalho de conscientização, por meio de palestras, da realização de eventos e de publicações que, sem extremismo e com objetividade e informações, procure informar a população sobre as muitas injustiças que ocorrem no Brasil e despertar a consciência dos serranos atuais para a necessidade de dar continuidade às tradições de respeito por todos os seres humanos e de apoio fraterno aos necessitados.

Viva! Serra Negra - Como o sr. vê a atual situação social e política do país? É possível superar essa grave crise rapidamente?
Dalmo Dallari - Eu vejo com muita consternação a atual situação do Brasil, governado, na realidade, por adoradores do dinheiro, egoístas que se valem da ignorância e das ambições dos que, por despreparo e pela ambição de se porem em evidência, atuam a serviço dos detentores da riqueza. Mas eu continuo otimista, achando que a Constituição de 88, reconhecida e louvada em muitos países como uma das mais democráticas do mundo, nos conduzirá ao estabelecimento de um verdadeiro Estado democrático de direito.

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